Powered By Blogger

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Lisboa



As placas indicam o caminho. Não há que enganar.
Qual o destino?
Procura-se uma tasca simpática sem descobrir se a fome existe.
Desce-se a calçada com o mesmo intuito com que se sobe.
Por mais que se vagueie por ruas gastas de serem vistas e revistas.
O que fazer?
As placas indicam o caminho. Não há que enganar.
Procura-se o diferente, com um olhar igual.
Arrastam-se as memórias, prontas para um arquivo a criar.
Avança-se com determinação por sonhos ainda por sonhar.
As placas indicam o caminho. Não há que enganar.
Procuram-se os encantos escondidos no caos urbanístico.
Cheiram-se flores e castanhas no meio de pobres e miseráveis.
Acariciam-se bancas de alfarrabistas, á procura de nada.
Contemplam-se sapatos apressados em todas as direcções.
Para onde vão?
As placas indicam o caminho. Não há que enganar.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Admirável e exemplar


Tinha acordado pensativo.
Os seus 36 anos de vida tinham-no tornado numa figura admirável e exemplar. Era o protótipo do funcionário diligente, o que alimentava o respeito dos colegas e arrancava rasgados elogios das chefias. Em casa, face a uma esposa sempre atenta a todos os detalhes da vida familiar, restava-lhe aí um papel de figura de Estado do tipo presidente italiano. Figura institucional esvaziada de poderes executivos. Ainda assim era personagem de referência dos filhos, da mulher e da mãe, aos quais nunca havia desapontado.
Naquela tarde cumpria as rotinas, que de tão repetidas já não pariam qualquer emoção ou imaginação. De repente, do nada, foi assaltado repentinamente por uma séria de perguntas, vindas sabe-se lá de onde. Mas tinha sido realmente ele próprio? Quantas vezes deixou de fazer o que queria? Dizer o que queria? Quantas satisfações deu porque se sentiu nessa obrigação? Será que se perdera numa teia de equilíbrios convenientes? Tinha vivido a sua vida ou a dos outros? E no final, era feliz? Dono de si??.
Dezoito horas. Religiosamente abandonou a repartição e correu para o comboio das dezoito e doze minutos, a C.P. não se compadece com filosofias e assim rapidamente desceu a calçada que conhecia de cor e correu para mais uma vez cumprir o horário. Há hora combinada lá estava o comboio. Via-o já como um bom amigo, tal era a fidelidade por demais comprovada. Entrou e sentiu o aconchego do lugar habitual e mais uma vez deixou-se levar. Estranha relação esta que mantinha com uma besta de aço que o aconchegava, guiava, levava mas que também o prendia. Teve vontade de se libertar desta prisão familiar. O conforto passou a incómodo e antes, muito antes do destino final, saiu. Impelido por uma força bruta, quase como se fosse uma cadeira ejectável em acção.
Saiu perto de Belém e seguiu as pernas que o levavam, mas o espírito estava mais desorientado do que o de um autista a quem mudaram as rotinas. As pernas pararam algures numa esplanada vizinha do Tejo onde sentiu descansar o olhar e a ansiedade sossegou. Respirou uma tranquilidade e um espaço que lhe eram pouco familiares. Olhou o rio e achou-o admirável e exemplar. Se assim era, poderia ser seu irmão gémeo. Semelhança inusitada entre um simples cidadão e um elemento poderoso da natureza como um rio, quanto ás diferenças eram por demais evidentes. Mas quais seriam as diferenças realmente importantes? O tempo de existência de ambos? O seu tamanho? A sua importância para terceiros? Talvez esta massa gigante de água tivesse mais vida do que alguma vez sonhara. Certo era que ao longo do tempo traçara o seu caminho, marcara o seu espaço, definira as suas margens e assim como corria doce e o mostrava aos seus utilizadores, também tinha dias de desvario e capricho que eram demonstrados sem que a opinião dos terceiros fosse importante. Apesar das barragens que o modelavam, continuava a ser ele mesmo. Adaptou-se aos homens e estes a ele, afinal a simbiose existe.
Quando a cerveja terminou, pensou. Vou ser um Tejo! Caramba, como iria reagir o seu mundo, quando o seu eu se afirmasse no exterior? Como reagiriam os outros ao estranho? Talvez fosse prudente usar de bom senso e arrepiar caminho. Mas afinal o seu mundo também tinha o direito de conhecer o seu eu, era uma oportunidade única e as margens não iriam transbordar seguramente. Sorriu para si mesmo antes de chamar o empregado e de lhe pagar. A chegada do funcionário fê-lo mudar de ideias.
-Traga-me mais uma cerveja, se faz favor.
Afinal agora que decidira dar espaço aos seus sonhos e prazeres, agora que sentira o leme do seu navio pela primeira vez, era idiota não desfrutar o momento, especialmente num fim de tarde quente como aquele.
Mais tarde levantou-se para regressar a casa, embora por um caminho diferente do habitual. Ocupava o mesmo corpo, o mesmo espaço físico, mas sentia-se mais leve e ágil.
Despediu-se ali mesmo do sujeito com quem vivera sempre. Esse ficou no cais. Dali em diante era o comandante nomeado do navio de si mesmo. Estava na hora de levantar âncora e navegar em alto mar, deixando para trás a navegação à vista da costa e o posto de grumete. Em frente a todo o vapor. Sim meu capitão. Zarpamos!

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Fernanda

Bom dia Fernanda.

A agitação daqueles inícios de semana era comparável à excitação que precede a largada de uma corrida de automóveis. A visão da chegada daquela mulher franzina de farta cabeleira e olhos penetrantes, era quase um tónico para uma equipa cinzenta, muito aprumada nas suas gravatas de seda e uma forma notável de fugir ao Benfica Sporting do fim de semana. Somava-se a tudo isto o facto de uma mulher sozinha no meio de homens, aligeirar o ambiente e “impor” alguma contenção e educação aos discursos “másculos”.
A delicadeza de modos e a aparente fragilidade física, escondiam um poço de vontade e uma capacidade de trabalho fora do comum.
Tempos passaram e os projectos da Fernanda levaram-na para outros trilhos e naturalmente o afastamento instalou-se. Apenas se ouviam notícias soltas de alguém que se cruzara com ela.
Há dia chegou um desses relatos soltos.
Numa destas sextas feiras, a Fernanda sentiu-se mal. O que parecia ser pouco importante, veio a ser em menos de três dias, a razão para uma partida prematura. Talvez prematura demais para ser até uma partida.
Porque os nossos mundos mudam, o afastamento físico de algumas pessoas é natural, mas as memórias são partes de nós.

Adeus Fernanda

JHPereira

25 Set 2009

Couraçado


Couraçado

Foi uma ideia brilhante para a maioria dos estrategas. Conceito simples, couraça mais forte que os projécteis que o podiam atingir, ou seja inatingível.
Que coisa tão humana esta de construir fortalezas e pensar que estamos dentro e os outros fora, que o nosso poder se pode ostentar e esfregar nas barbas dos “fracos” que ficam do outro lado.
Os couraçados hoje têm outros nomes, chamam-lhes condomínios privados, ou clubes exclusivos, ou qualquer outra forma que permita a uma casta não se misturar em especial com as “inferiores”.
Mas ideia da couraça é tanto menos inteligente quanto a História tem revelado que quanto mais altos são os muros, maior é a vontade de saltar. Curioso é também ver que é justamente paredes meias com o luxo que vive a maior pobreza, o que é natural já que alguém tem de limpar, jardinar, conduzir, tomar conta dos meninos, etc, etc, etc.
O ostracismo tem levado ás desgraças que qualquer compêndio de História relata melhor do que o autor destas palavras. O fim dos couraçados e do seu poder foi no mínimo uma aceitação de derrota, já que os milhões que foram precisos para os construir são ridicularizados pelos tostões necessários para os destruir.
Ora bolas, lá se vai a aldeia dita global.

JHPereira

24-Set-2009