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sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Admirável e exemplar


Tinha acordado pensativo.
Os seus 36 anos de vida tinham-no tornado numa figura admirável e exemplar. Era o protótipo do funcionário diligente, o que alimentava o respeito dos colegas e arrancava rasgados elogios das chefias. Em casa, face a uma esposa sempre atenta a todos os detalhes da vida familiar, restava-lhe aí um papel de figura de Estado do tipo presidente italiano. Figura institucional esvaziada de poderes executivos. Ainda assim era personagem de referência dos filhos, da mulher e da mãe, aos quais nunca havia desapontado.
Naquela tarde cumpria as rotinas, que de tão repetidas já não pariam qualquer emoção ou imaginação. De repente, do nada, foi assaltado repentinamente por uma séria de perguntas, vindas sabe-se lá de onde. Mas tinha sido realmente ele próprio? Quantas vezes deixou de fazer o que queria? Dizer o que queria? Quantas satisfações deu porque se sentiu nessa obrigação? Será que se perdera numa teia de equilíbrios convenientes? Tinha vivido a sua vida ou a dos outros? E no final, era feliz? Dono de si??.
Dezoito horas. Religiosamente abandonou a repartição e correu para o comboio das dezoito e doze minutos, a C.P. não se compadece com filosofias e assim rapidamente desceu a calçada que conhecia de cor e correu para mais uma vez cumprir o horário. Há hora combinada lá estava o comboio. Via-o já como um bom amigo, tal era a fidelidade por demais comprovada. Entrou e sentiu o aconchego do lugar habitual e mais uma vez deixou-se levar. Estranha relação esta que mantinha com uma besta de aço que o aconchegava, guiava, levava mas que também o prendia. Teve vontade de se libertar desta prisão familiar. O conforto passou a incómodo e antes, muito antes do destino final, saiu. Impelido por uma força bruta, quase como se fosse uma cadeira ejectável em acção.
Saiu perto de Belém e seguiu as pernas que o levavam, mas o espírito estava mais desorientado do que o de um autista a quem mudaram as rotinas. As pernas pararam algures numa esplanada vizinha do Tejo onde sentiu descansar o olhar e a ansiedade sossegou. Respirou uma tranquilidade e um espaço que lhe eram pouco familiares. Olhou o rio e achou-o admirável e exemplar. Se assim era, poderia ser seu irmão gémeo. Semelhança inusitada entre um simples cidadão e um elemento poderoso da natureza como um rio, quanto ás diferenças eram por demais evidentes. Mas quais seriam as diferenças realmente importantes? O tempo de existência de ambos? O seu tamanho? A sua importância para terceiros? Talvez esta massa gigante de água tivesse mais vida do que alguma vez sonhara. Certo era que ao longo do tempo traçara o seu caminho, marcara o seu espaço, definira as suas margens e assim como corria doce e o mostrava aos seus utilizadores, também tinha dias de desvario e capricho que eram demonstrados sem que a opinião dos terceiros fosse importante. Apesar das barragens que o modelavam, continuava a ser ele mesmo. Adaptou-se aos homens e estes a ele, afinal a simbiose existe.
Quando a cerveja terminou, pensou. Vou ser um Tejo! Caramba, como iria reagir o seu mundo, quando o seu eu se afirmasse no exterior? Como reagiriam os outros ao estranho? Talvez fosse prudente usar de bom senso e arrepiar caminho. Mas afinal o seu mundo também tinha o direito de conhecer o seu eu, era uma oportunidade única e as margens não iriam transbordar seguramente. Sorriu para si mesmo antes de chamar o empregado e de lhe pagar. A chegada do funcionário fê-lo mudar de ideias.
-Traga-me mais uma cerveja, se faz favor.
Afinal agora que decidira dar espaço aos seus sonhos e prazeres, agora que sentira o leme do seu navio pela primeira vez, era idiota não desfrutar o momento, especialmente num fim de tarde quente como aquele.
Mais tarde levantou-se para regressar a casa, embora por um caminho diferente do habitual. Ocupava o mesmo corpo, o mesmo espaço físico, mas sentia-se mais leve e ágil.
Despediu-se ali mesmo do sujeito com quem vivera sempre. Esse ficou no cais. Dali em diante era o comandante nomeado do navio de si mesmo. Estava na hora de levantar âncora e navegar em alto mar, deixando para trás a navegação à vista da costa e o posto de grumete. Em frente a todo o vapor. Sim meu capitão. Zarpamos!