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terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Balcão 63



Eram quase oito da noite quando a campainha tocou. Chegara o amigo de longa data, tão longa como aquela vida de quase cinquenta anos. Dentro de casa a azáfama resumia-se á busca de um cinto perdido numa qualquer gaveta, missão que escondia um ambiente pesado onde só pontuavam, a expressão carregada da companheira de vinte e cinco anos e uma porta fechada que separava este cenário do resto de uma família que jantava em silêncio. Duas malas, uma grande e uma pequena, continham toda uma vida e ainda assim não acusavam excesso de peso. Uma vida carregada em duas malas e ainda assim leves, são a prova de uma vida pouco cheia. Arrumada a bagageira, o carro arrancou. Na conversa de circunstância foi perguntado se algum local especial tinha ficado para uma visita de última hora. Nenhum local merecia essa distinção ou saudade, nem o portão da casa que ficava para trás foi olhado por um instante. Fizeram uma paragem num bar, tomaram um café e sustentaram a mesma conversa de circunstância que parecia uma tábua de salvação a evitar o desvio para assuntos mais melindrosos.
Eram quase nove da noite. Chegaram ao aeroporto. Os vinhos e as memórias de infância continuavam a ocupar os discursos dos dois sujeitos conscientes da enorme ausência que iriam viver daqui para a frente. Chegou a hora de entrar. Trocaram um quase abraço e momentos antes de cruzar a porta, trocaram um quase olhar, evitando uma quase lágrima. No turbilhão das emoções e das centenas de destinos que se cruzam naquele espaço, procurou alguma orientação no visor que anunciava as partidas. Lá estava. Confirmado. Check in balcão 63. Tudo normal, como se nada de extraordinário se passasse. Sem sobressaltos, como se fosse normal alguém ter de partir para recomeçar uma vida, justamente na idade em que a deveria ter consolidada e estável.
Eram quase dez da noite e a espera inútil ganhava peso. Pelas janelas da aerogare mal se via o céu. Fez um esforço, abeirou-se da janela e fitou o céu de Lisboa pela última vez, ou pelo menos o que a chuva deixava ver dele. Quase que viu aquele céu, mas tinha a memória da luz deste céu, juntamente com milhões de memórias que lhe trituravam o cérebro e seguramente pesavam muito mais do que a bagagem.
Eram quase onze da noite e a chamada para o embarque foi mais um exemplo de rigor, exactidão e segurança, como se os serviços aeroportuários estivessem a gozar com a falta de rigor da vida ela própria. Sentado no lugar que lhe destinaram, preparou-se para a descolagem e quando o avião se elevou no ar, a sensação de vazio no estômago foi ainda mais vazia que o habitual. Perdeu o contacto físico com aquele chão e sabia que esse era o primeiro passo para se libertar do que ficara para trás, não sentia essa liberdade, pelo menos para já. Não voltou a olhar pela janela, mesmo sabendo como era bonita vista do ar aquela cidade á beira Tejo.
Era quase meia noite quando retirou do bolso a carta que o amigo lhe tinha dado naquela quase despedida e onde ficara acordado que a abertura da mesma teria lugar já em pleno voo. Abriu-a. Lá dentro uma série de frases simpáticas que bem poderiam ter sido pronunciadas na tal quase despedida, mas que pelos vistos o interlocutor foi incapaz de o fazer de outra forma que não a escrita. Tinha ainda uma citação de um poeta que dizia ser hoje o primeiro dia do resto da sua vida e que a coragem se bebe até de um copo sem fundo. Aquelas palavras resumiam muito do que sabia ter de fazer e funcionaram como um murro no estômago que quase lhe fez perder a respiração.
Era quase uma da manhã. Encostou-se. Quase que adormeceu, quase esqueceu tudo. Lembrou apenas que amanhã o nascer do sol seria seguramente muito mais do que um quase nascer do sol.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Gravata



O telefone tocou. Era o velho amigo João que com uma voz feliz lhe anunciou um casamento. Era o segundo e parece que desta o João estava decidido a investir numa vida a dois. Seria uma cerimónia simples e reservada aos mais chegados. Tudo foi agendado para 31 de Março, quase como que anunciando o final do prazo para que tudo fosse verdade. Faltavam quinze dias e decidiu de imediato tratar do “uniforme” apropriado. Já tinha um fato cinza muito recente, uma camisa azul daquelas que funcionam bem com tudo e pensou numa gravata vermelha. Porquê vermelha? Talvez um reflexo exterior da alegria sentida ou talvez uma homenagem ao João e a outros amigos com quem se partilha a mesma paixão clubistíca. Certo é que não tinha uma gravata vermelha e talvez até fosse essa a razão de tal escolha.


Na manhã seguinte partiu numa cruzada em busca dessa gravata sonhada e que teria um vermelho menos óbvio, que funcionasse, mas que seguramente ainda só havia sido fabricada nos seus sonhos. Várias horas e muitas lojas depois, aquele mega centro comercial parecia um deserto onde só encontrou frases simpáticas de empregadas de balcão. Do tipo:


Fica-lhe tão bem…, é mesmo o que combina com o seu tom de pele…, muito elegante…, etc.


Certo é que no final da manhã a gravata sonhada era ainda prisioneira dos seus sonhos.


Tudo aquilo o incomodava. Nunca fora ensinado a ser consumista, até porque as suas origens não sendo pobres, eram remediadas, contidas nos gastos e sobretudo pouco dadas a futilidades. Atropelava os seus princípios, educação e valores e isso magoava-o, sobretudo porque lhe dava prazer. Quase um combate corpo a corpo, com apenas um lutador, mas a verdade é que retirava prazer daquela busca e talvez nem quisesse encontrar a dita gravata, se isso acontecesse, terminaria essa busca tão prazeirosa. O objectivo era a busca, não a descoberta. Tinha esta consciência, dava-lhe pouca atenção, quase a devotava ao abandono, apenas porque também ela o contrariava nos seus conceitos e preconceitos herdados. Mas que diabo! Há razão para tanto incómodo? . A idade, a independência económica e até a solidão, deixaram para trás as críticas alheias e também o que não se sabe, não se comenta e seguramente ele manteria o silêncio.


Quinze dias depois foi ao dito casamento. Ficou feliz pelo João e sentiu como sua aquela conquista. No fim do dia regressou a casa e a primeira coisa que tirou foi a gravata. Era castanha, nova, bonita, mas não era aquela que ainda estava no seu pensamento, em prisão domiciliária e talvez condenada a prisão perpétua.