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terça-feira, 3 de julho de 2012

OBRIGADO!


Que nunca se entra no mesmo rio duas vezes

é fácil de entender

Mas há sensações que se repetem

em águas diferentes.

Ou há dois de nós

Um que mata e outro que ama.

Um amante da razoabilidade

outro fã da loucura.

Vale a pena seguir o caminho branco

que leva ao engano?

Mas quando se descobre na terra

Um pedaço de céu que ganha forma.

Que desse sonho

nasce um sorriso.

Os golpes palacianos valem nada e

para lá da moralidade

importa estar vivo

e agradecer a quem pôs as estrelas no céu.

Obrigado!

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

"Acabou"




Acabou-se, este é o meu último cadáver.
Não volto a fazer isto. Fi-lo vezes demais. Tenho o corpo carregado deste cheiro pestilento do qual talvez nunca me venha a livrar, da mesma forma que na memória, aquelas faces sem vida me vão acompanhar sempre. Mas uma coisa é certa, este é o meu último cadáver.
Trabalho limpo, quase perfeito. Dois disparos á queima roupa e um cérebro desfeito, o resto do corpo imaculado, como que a pedir mais vida e seguramente a alma intacta. Guardou o corpo e como era sexta-feira, só lá para segunda ou terça alguém lhe voltaria a mexer.
O plano de fuga estava delineado há muito. Malas de viagem no carro, bilhetes de avião e reservas de hotel confirmadas. Agora só reserva para um, porque apesar de bisonhada, esta evasão não contava com a colaboração da parceira inseparável, já que esta se separou. Também ela assassinada por um tal Kaposi, que nunca ninguém vai conseguir apanhar. Sentia-lhe a ausência física, mas sabia que ao contrário das almas dos seus mortos, que ficavam junto a eles, atentas, a dela soltou-se e acompanha-o sempre.
Tudo limpo. É hora de partir. Como já é tarde, evitam-se encontros e conversas mais ou menos iguais sobre essa coisa estranha chamada reforma, da qual tanto tinha ouvido falar mas só agora estava prestes a viver. Naquele momento deixou no frigorífico da morgue a sua paixão de mais de quarenta anos pela medicina legal.
Apagou a luz, fechou a porta, saiu e disse de maneira que a alma dela ouvisse:
Sabes, quando não estás, faz mais frio.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Balcão 63



Eram quase oito da noite quando a campainha tocou. Chegara o amigo de longa data, tão longa como aquela vida de quase cinquenta anos. Dentro de casa a azáfama resumia-se á busca de um cinto perdido numa qualquer gaveta, missão que escondia um ambiente pesado onde só pontuavam, a expressão carregada da companheira de vinte e cinco anos e uma porta fechada que separava este cenário do resto de uma família que jantava em silêncio. Duas malas, uma grande e uma pequena, continham toda uma vida e ainda assim não acusavam excesso de peso. Uma vida carregada em duas malas e ainda assim leves, são a prova de uma vida pouco cheia. Arrumada a bagageira, o carro arrancou. Na conversa de circunstância foi perguntado se algum local especial tinha ficado para uma visita de última hora. Nenhum local merecia essa distinção ou saudade, nem o portão da casa que ficava para trás foi olhado por um instante. Fizeram uma paragem num bar, tomaram um café e sustentaram a mesma conversa de circunstância que parecia uma tábua de salvação a evitar o desvio para assuntos mais melindrosos.
Eram quase nove da noite. Chegaram ao aeroporto. Os vinhos e as memórias de infância continuavam a ocupar os discursos dos dois sujeitos conscientes da enorme ausência que iriam viver daqui para a frente. Chegou a hora de entrar. Trocaram um quase abraço e momentos antes de cruzar a porta, trocaram um quase olhar, evitando uma quase lágrima. No turbilhão das emoções e das centenas de destinos que se cruzam naquele espaço, procurou alguma orientação no visor que anunciava as partidas. Lá estava. Confirmado. Check in balcão 63. Tudo normal, como se nada de extraordinário se passasse. Sem sobressaltos, como se fosse normal alguém ter de partir para recomeçar uma vida, justamente na idade em que a deveria ter consolidada e estável.
Eram quase dez da noite e a espera inútil ganhava peso. Pelas janelas da aerogare mal se via o céu. Fez um esforço, abeirou-se da janela e fitou o céu de Lisboa pela última vez, ou pelo menos o que a chuva deixava ver dele. Quase que viu aquele céu, mas tinha a memória da luz deste céu, juntamente com milhões de memórias que lhe trituravam o cérebro e seguramente pesavam muito mais do que a bagagem.
Eram quase onze da noite e a chamada para o embarque foi mais um exemplo de rigor, exactidão e segurança, como se os serviços aeroportuários estivessem a gozar com a falta de rigor da vida ela própria. Sentado no lugar que lhe destinaram, preparou-se para a descolagem e quando o avião se elevou no ar, a sensação de vazio no estômago foi ainda mais vazia que o habitual. Perdeu o contacto físico com aquele chão e sabia que esse era o primeiro passo para se libertar do que ficara para trás, não sentia essa liberdade, pelo menos para já. Não voltou a olhar pela janela, mesmo sabendo como era bonita vista do ar aquela cidade á beira Tejo.
Era quase meia noite quando retirou do bolso a carta que o amigo lhe tinha dado naquela quase despedida e onde ficara acordado que a abertura da mesma teria lugar já em pleno voo. Abriu-a. Lá dentro uma série de frases simpáticas que bem poderiam ter sido pronunciadas na tal quase despedida, mas que pelos vistos o interlocutor foi incapaz de o fazer de outra forma que não a escrita. Tinha ainda uma citação de um poeta que dizia ser hoje o primeiro dia do resto da sua vida e que a coragem se bebe até de um copo sem fundo. Aquelas palavras resumiam muito do que sabia ter de fazer e funcionaram como um murro no estômago que quase lhe fez perder a respiração.
Era quase uma da manhã. Encostou-se. Quase que adormeceu, quase esqueceu tudo. Lembrou apenas que amanhã o nascer do sol seria seguramente muito mais do que um quase nascer do sol.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Gravata



O telefone tocou. Era o velho amigo João que com uma voz feliz lhe anunciou um casamento. Era o segundo e parece que desta o João estava decidido a investir numa vida a dois. Seria uma cerimónia simples e reservada aos mais chegados. Tudo foi agendado para 31 de Março, quase como que anunciando o final do prazo para que tudo fosse verdade. Faltavam quinze dias e decidiu de imediato tratar do “uniforme” apropriado. Já tinha um fato cinza muito recente, uma camisa azul daquelas que funcionam bem com tudo e pensou numa gravata vermelha. Porquê vermelha? Talvez um reflexo exterior da alegria sentida ou talvez uma homenagem ao João e a outros amigos com quem se partilha a mesma paixão clubistíca. Certo é que não tinha uma gravata vermelha e talvez até fosse essa a razão de tal escolha.


Na manhã seguinte partiu numa cruzada em busca dessa gravata sonhada e que teria um vermelho menos óbvio, que funcionasse, mas que seguramente ainda só havia sido fabricada nos seus sonhos. Várias horas e muitas lojas depois, aquele mega centro comercial parecia um deserto onde só encontrou frases simpáticas de empregadas de balcão. Do tipo:


Fica-lhe tão bem…, é mesmo o que combina com o seu tom de pele…, muito elegante…, etc.


Certo é que no final da manhã a gravata sonhada era ainda prisioneira dos seus sonhos.


Tudo aquilo o incomodava. Nunca fora ensinado a ser consumista, até porque as suas origens não sendo pobres, eram remediadas, contidas nos gastos e sobretudo pouco dadas a futilidades. Atropelava os seus princípios, educação e valores e isso magoava-o, sobretudo porque lhe dava prazer. Quase um combate corpo a corpo, com apenas um lutador, mas a verdade é que retirava prazer daquela busca e talvez nem quisesse encontrar a dita gravata, se isso acontecesse, terminaria essa busca tão prazeirosa. O objectivo era a busca, não a descoberta. Tinha esta consciência, dava-lhe pouca atenção, quase a devotava ao abandono, apenas porque também ela o contrariava nos seus conceitos e preconceitos herdados. Mas que diabo! Há razão para tanto incómodo? . A idade, a independência económica e até a solidão, deixaram para trás as críticas alheias e também o que não se sabe, não se comenta e seguramente ele manteria o silêncio.


Quinze dias depois foi ao dito casamento. Ficou feliz pelo João e sentiu como sua aquela conquista. No fim do dia regressou a casa e a primeira coisa que tirou foi a gravata. Era castanha, nova, bonita, mas não era aquela que ainda estava no seu pensamento, em prisão domiciliária e talvez condenada a prisão perpétua.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Sol do sorriso



O clima molda as pessoas. Se é verdade que o frio tolhe os movimentos, também é verdade que o sol abre os espíritos e os corpos. Por essa razão, naquela manhã de domingo era impossível ficar na cama e nada melhor do que seguir o apelo da descoberta do charme de Lisboa. Já tinha ouvido falar das vilas operárias da Graça, embora nunca as tivesse tocado com os pés, nem com os olhos.


Se a busca era a da surpresa, foi fácil encontrá-la apenas alguns metros abaixo da rua principal, a tal que já calcorreara vezes sem conta, guiado pela pressa que menosprezava a rua de trás, com a sua pacatez de aldeia enxertada na malha urbana e ainda assim senhora de espaço e alma próprias. Como estes passeios sem hora marcada, são víciantes para o cérebro, o melhor era não desembarcar e seguir viagem desfrutando ao máximo dos estímulos para os sentidos. Era demasiado cedo para almoçar naquele restaurante fantástico, que tinha contra si apenas o facto de ser um dejá vu. Ainda bem que o estômago não reclamou e deixou o andar vaguear até ao miradouro frente á igreja, outrora convento Agostinho, com um milhão de histórias e lendas, situado frente a uma das mais belas paisagens da cidade.


Sentia no ar o cheiro de terreno de batalha abandonado, séculos de histórias encavalitados num espaço tão pequeno, fizeram de Lisboa uma das cidades mais humanas do mundo e isso sente-se a cada recanto. Nunca se está só nesta cidade. Por mais que se queira há sempre uma estátua, uma história, uma obra, uma placa, que nos recordam que por aqui passaram milhões de almas, em tempos tão diferentes.


Os passos andaram pelas escolas gerais e as memórias da primeira universidade, até mergulharem nas vielas da Alfama profunda, aquela que ao princípio parece um labirinto mas que com alguma prática nos permite tratar os becos por tu.


Num largo soalheiro, numa esplanada simples, a escolha só podia ser a de sabores alfacinhas. Iscas com elas e petingas com arroz de grelos. Vinho a condizer e uma plateia enorme de turistas estrangeiros comendo bitoques, o cenário perfeito surgiu no momento em que trocou um sorriso com ela. Sabia que os motivos para sorrir eram já muitos mas aquela presença era a maior responsável pelo seu sorriso.


Quando a gentileza de um empregado disse:


-Vão aceitar um café?


Caiu um pano naquele palco. Naturalmente que o café era o anúncio do fim.


Ficaram nas pedras da calçada mais estas memórias que se juntam a milhões de outras que já lá viviam. Nos dias felizes de sol também se morre.


Alguma coisa morreu nesse dia.

sábado, 18 de dezembro de 2010

PRAXIS

A chegada ao cinema e todos os procedimentos necessários para assistir ao filme, já não lhes causava estranheza. Eram um casal habituado aquele espaço e cinéfilos convictos, só lhes faltava ser um casal.

Encaminharam-se para a sala, após a refeição rápida do costume e já no alto das escadas, ela comenta a duração da fita, “… Caramba, mais de duas horas e meia…”. Impõe-se uma ida à casa de banho no sentido de precaver aflições perturbadoras do filme.

Ele ficou imóvel na entrada do corredor que dava acesso às salas. Cabeça levantada, estático, vê aproximar-se uma senhora, menos familiarizada com aquele lugar e esta entrega-lhe um bilhete em mão. Reflexamente agarrou o pedaço de papel e só instantes depois disse sorrindo:

- Minha senhora desculpe, mas eu não trabalho aqui.

As desculpas e o embaraço ficaram por conta da interlocutora. Riu-se sozinho pelo caricato da cena e quando a sua companhia chegou, contou-lhe o sucedido e riram ambos por breves instantes. Breves, já que as horas eram apertadas. Vamos indo.

Quando as luzes se apagaram e começou a avalanche de publicidade, mais uma vez o pensamento trouxe à memória a ideia de que estes infindáveis minutos, são uma perda de tempo. Lembrou-se da cena engraçada da porta.”… Mulherzinha tonta, confundiu-me com o porteiro, ou talvez não!...” .

Agiu como porteiro, na figura e na atitude, era um porteiro. Pobre mulher não se enganou. Quem se enganou foi ele ao comportar-se como tal. Sem intenção é certo, sem querer enganar ninguém, claro.

Mas, mesmo não sendo porteiro, comportou-se como tal.

Quantas vezes o latim que nos sai da boca diz uma coisa que não se coaduna com a praxis. Talvez até nos dê um certo conforto egoísta, ou talvez não.

Bem o filme vai começar.


P.S. Praxis (do grego πράξις), em seu sentido amplo, é a actividade humana em sociedade e na natureza.

sábado, 30 de outubro de 2010

Incerteza


Já passava muito da meia-noite quando adormeceu. Aquele adormecer foi único. Experimentou pela primeira vez na vida um adormecer de algodão e só nessa noite a expressão “dormir nas nuvens”, foi por ele compreendida no seu todo. Nunca adormecera assim.


Os últimos seis meses foram uma montanha russa de emoções que teve a sua rampa de lançamento no dia em que, a agora sua ex-mulher lhe disse que ia embora. Aquela que fora a companheira de sempre, desde os tempos do liceu, cansou-se e a meio dos trinta, resolveu aprender o que a vida teria para lhe ensinar. Ele, que absorvido no trabalho e na “normalidade” do dia a dia, nunca soube ler qualquer sinal e o espanto abalroou-o como uma locomotiva desenfreada.


Refeito, como se pode ficar de um tal embate, António havia passado os últimos seis meses em buscas pouco conseguidas de calores femininos. Fraco conhecedor das artes do amor e da sedução, fruto de uma educação pouco esclarecedora, de um feitio muito reservado e de uma vida pouco temperada, via assim as semanas e os meses passarem, sem que as suas investidas na matéria fossem premiadas com qualquer sucesso.


Na semana passada um amigo apresentou-lhe Amélia. Mulher madura e que para além de se ter amolecido com a presença do nosso herói, compreendeu que se queria dançar com ele, teria de ser ela a conduzir em boa parte do tempo e assim facilitar-lhe a vida. Assim o fez e depois de muitas horas de conversa, convidou-o para jantar em sua casa. O inesperado convite lançou António numa febre quase adolescente de preparativos inúteis, que passaram por uma revisão exaustiva de todas as peças de vestuário, barba, cabelo, perfume, temas de conversa, etc, etc, etc.


Os três dias que mediaram entre o convite e a data do evento, foram de trabalho intenso no escritório, mas acima de tudo fora dele. Os resultados da tensão foram notórios nas noites dormidas em sobressalto, nas refeições mal digeridas e na anarquia geral, provocada pelo excesso de atenção naquele jantar.


Á hora marcada subiu as escadas. A cada degrau os sapatos pesavam mais e aquela maldita dor de rins que não o largava há três dias, parecia pontapeá-lo. Era difícil gerir outra posição que não a de deitado. Estoicamente manteve-se direito e sorridente, sentindo mas ignorando a falta de obediência que as pernas lhe tinham.


Amélia recebeu-o num aconchego tão bem gerido que roçava a perfeição nos detalhes e ainda assim o deixava relaxado, estranhamente descontraído. A mesa iluminada por doze velas estava salpicada de pequenos pratos multicoloridos, e neles uma colecção de ingredientes gourmet, dos quais já ouvira falar mas que nunca haviam passado o teste das suas papilas gustativas. Ligações de requeijão com doces, saladas com vegetais vindos de outro planeta, temperos variados que começavam na flor de sal e acabavam no vinagre de chocolate e um vinho de veludo que ligava tudo isto como um luxuoso papel de embrulho.


A tranquilidade do estômago foi-se apoderando do resto do corpo, excepto dos malditos rins. Esse assunto veio naturalmente á conversa e ao ter conhecimento dele, Amélia sorriu, levantou-se e convidou António a acompanhá-la. Deitou-o na cama á média luz e levantou-lhe a camisa descobrindo-lhe as costas. Colocou um saco quente sobre o local exacto da dor e tapou-o com redobrados cuidados. Deixou-o repousar largos minutos naquele conforto e quando entendeu ser conveniente, massajou-lhe as costas de forma lenta e suave. Terminado este tratamento, que acabou por tocar mais a alma do que os rins, encaminhou o seu convidado até ao sofá mais confortável da casa, serviu-lhe um chá de jasmim, enquanto o som da bossa nova sussurrava num canto da sala. Alguns minutos depois despediram-se. Partilhavam os sorrisos abertos mas tranquilos.


Ao descer as escadas, António esquecera os rins, as pernas, os nervos e um rol de inquietações e medos. Claro que continuava a ser uma pessoa como todas as outras, á procura de ser amado e a gerir os seus medos, mas agora com uma confiança única. Apesar de a noite não o ter contemplado com outras intimidades para além das já faladas e de ele e Amélia continuarem a ser duas ilhas, António ganhara a confiança de se aventurar numa próxima vez. Estava longe de ser um especialista na matéria, mas aprendera mais sobre sedução numa noite do que em muitos anos.


Algo estava garantido, hoje adormeceria como nunca e adormeceu.