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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

"Acabou"




Acabou-se, este é o meu último cadáver.
Não volto a fazer isto. Fi-lo vezes demais. Tenho o corpo carregado deste cheiro pestilento do qual talvez nunca me venha a livrar, da mesma forma que na memória, aquelas faces sem vida me vão acompanhar sempre. Mas uma coisa é certa, este é o meu último cadáver.
Trabalho limpo, quase perfeito. Dois disparos á queima roupa e um cérebro desfeito, o resto do corpo imaculado, como que a pedir mais vida e seguramente a alma intacta. Guardou o corpo e como era sexta-feira, só lá para segunda ou terça alguém lhe voltaria a mexer.
O plano de fuga estava delineado há muito. Malas de viagem no carro, bilhetes de avião e reservas de hotel confirmadas. Agora só reserva para um, porque apesar de bisonhada, esta evasão não contava com a colaboração da parceira inseparável, já que esta se separou. Também ela assassinada por um tal Kaposi, que nunca ninguém vai conseguir apanhar. Sentia-lhe a ausência física, mas sabia que ao contrário das almas dos seus mortos, que ficavam junto a eles, atentas, a dela soltou-se e acompanha-o sempre.
Tudo limpo. É hora de partir. Como já é tarde, evitam-se encontros e conversas mais ou menos iguais sobre essa coisa estranha chamada reforma, da qual tanto tinha ouvido falar mas só agora estava prestes a viver. Naquele momento deixou no frigorífico da morgue a sua paixão de mais de quarenta anos pela medicina legal.
Apagou a luz, fechou a porta, saiu e disse de maneira que a alma dela ouvisse:
Sabes, quando não estás, faz mais frio.

10 comentários:

  1. Um texto ao jeito dos saudosos "Contos do Imprevisto": uma história que conduz o leitor num sentido, para no final se desvendar, com a naturalidade das coisas simples... Até o Kaposi vai beber ao nosso imaginário, onde temos arrumados os mafiosos e outros atores do género ;))
    Há por aqui vários mimos de escrita, como dizer "de maneira que a alma dela ouvisse". Muito bom!

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  2. Paula, muito obrigado pelo comentário. Estou feliz com o resultado porque consegui pôr um leitor a sonhar e imaginar, de tal forma que o Dr. Moritz Kaposi, dermatologista Húngaro, assumiu um papel mafioso no teu imaginário. O objectivo foi conseguido. Obrigado.

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  3. Um personagem apaixonado, cansado e a viver das suas recordações. Gostei do "cenário" descrito e da capacidade de envolvimento da escrita. Aguardo outros temas, menos "pesados":)
    Beijo
    Ana Maria

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    1. E eu gostei da visita, da atenção e do comentário. Muito obrigado pela sua participação Ana.

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  4. Gosto, gosto da simplicidade da escrita. Gosto particularmente da imagem da inseparabilidade das almas, mesmo quando os contornos sinuosos da vida, ou da sua ausência, separam os inseparáveis.
    Fica a vontade de saber mais sobre a personagem, para além deste desabafo fortuito. Quem sabe um dia...

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  5. Engraçada essa ideía de querer ou achar que a personagem tem "mais para dar". Falta ao autor desenvolver a capacidade de fazer "crescer" as personagens.Fica registada a ideía e obrigado pelo comentário Olga.

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  6. Gosto destes personagens. Destes textos "abertos". Dos ambientes somente desvendados. Do menos óbvio, para lá da escrita.
    Ficam espaços e silêncios para se ler, preenchendo. Muito bom isso.

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  7. Gostei muito do seu comentário e ao lê-lo fico com a ideia de que fala de algo escrito por outrem. É muito simpática com os meus simples exercícios de escrita. Volte sempre.

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  8. Vou voltando JHPereira, aos lugares onde as palavras, me desarrumam a imaginação.:)

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  9. Este recanto está sempre aberto e gosta de a receber. Fica a promessa de nova aventura escrita para muito breve.;)

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