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sábado, 30 de outubro de 2010

Incerteza


Já passava muito da meia-noite quando adormeceu. Aquele adormecer foi único. Experimentou pela primeira vez na vida um adormecer de algodão e só nessa noite a expressão “dormir nas nuvens”, foi por ele compreendida no seu todo. Nunca adormecera assim.


Os últimos seis meses foram uma montanha russa de emoções que teve a sua rampa de lançamento no dia em que, a agora sua ex-mulher lhe disse que ia embora. Aquela que fora a companheira de sempre, desde os tempos do liceu, cansou-se e a meio dos trinta, resolveu aprender o que a vida teria para lhe ensinar. Ele, que absorvido no trabalho e na “normalidade” do dia a dia, nunca soube ler qualquer sinal e o espanto abalroou-o como uma locomotiva desenfreada.


Refeito, como se pode ficar de um tal embate, António havia passado os últimos seis meses em buscas pouco conseguidas de calores femininos. Fraco conhecedor das artes do amor e da sedução, fruto de uma educação pouco esclarecedora, de um feitio muito reservado e de uma vida pouco temperada, via assim as semanas e os meses passarem, sem que as suas investidas na matéria fossem premiadas com qualquer sucesso.


Na semana passada um amigo apresentou-lhe Amélia. Mulher madura e que para além de se ter amolecido com a presença do nosso herói, compreendeu que se queria dançar com ele, teria de ser ela a conduzir em boa parte do tempo e assim facilitar-lhe a vida. Assim o fez e depois de muitas horas de conversa, convidou-o para jantar em sua casa. O inesperado convite lançou António numa febre quase adolescente de preparativos inúteis, que passaram por uma revisão exaustiva de todas as peças de vestuário, barba, cabelo, perfume, temas de conversa, etc, etc, etc.


Os três dias que mediaram entre o convite e a data do evento, foram de trabalho intenso no escritório, mas acima de tudo fora dele. Os resultados da tensão foram notórios nas noites dormidas em sobressalto, nas refeições mal digeridas e na anarquia geral, provocada pelo excesso de atenção naquele jantar.


Á hora marcada subiu as escadas. A cada degrau os sapatos pesavam mais e aquela maldita dor de rins que não o largava há três dias, parecia pontapeá-lo. Era difícil gerir outra posição que não a de deitado. Estoicamente manteve-se direito e sorridente, sentindo mas ignorando a falta de obediência que as pernas lhe tinham.


Amélia recebeu-o num aconchego tão bem gerido que roçava a perfeição nos detalhes e ainda assim o deixava relaxado, estranhamente descontraído. A mesa iluminada por doze velas estava salpicada de pequenos pratos multicoloridos, e neles uma colecção de ingredientes gourmet, dos quais já ouvira falar mas que nunca haviam passado o teste das suas papilas gustativas. Ligações de requeijão com doces, saladas com vegetais vindos de outro planeta, temperos variados que começavam na flor de sal e acabavam no vinagre de chocolate e um vinho de veludo que ligava tudo isto como um luxuoso papel de embrulho.


A tranquilidade do estômago foi-se apoderando do resto do corpo, excepto dos malditos rins. Esse assunto veio naturalmente á conversa e ao ter conhecimento dele, Amélia sorriu, levantou-se e convidou António a acompanhá-la. Deitou-o na cama á média luz e levantou-lhe a camisa descobrindo-lhe as costas. Colocou um saco quente sobre o local exacto da dor e tapou-o com redobrados cuidados. Deixou-o repousar largos minutos naquele conforto e quando entendeu ser conveniente, massajou-lhe as costas de forma lenta e suave. Terminado este tratamento, que acabou por tocar mais a alma do que os rins, encaminhou o seu convidado até ao sofá mais confortável da casa, serviu-lhe um chá de jasmim, enquanto o som da bossa nova sussurrava num canto da sala. Alguns minutos depois despediram-se. Partilhavam os sorrisos abertos mas tranquilos.


Ao descer as escadas, António esquecera os rins, as pernas, os nervos e um rol de inquietações e medos. Claro que continuava a ser uma pessoa como todas as outras, á procura de ser amado e a gerir os seus medos, mas agora com uma confiança única. Apesar de a noite não o ter contemplado com outras intimidades para além das já faladas e de ele e Amélia continuarem a ser duas ilhas, António ganhara a confiança de se aventurar numa próxima vez. Estava longe de ser um especialista na matéria, mas aprendera mais sobre sedução numa noite do que em muitos anos.


Algo estava garantido, hoje adormeceria como nunca e adormeceu.

6 comentários:

  1. Desta feita na voz masculina, estreia para mim (e queira o autor desculpar tamanha ignorância!), redobro as minhas felicitações! Pelas palavras que vão assinalando, aqui e ali, "cenas" vividas ou idealizadas... Talvez, assumindo a minha energia masculina (a qual me foi "acusada" anteriormente),seja este o texto representativo do Ele e do Ela e dos seus quereres! Que continue a paixão da escrita! SR

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  2. Mais que feminino ou masculino, o retrato pretende ser humano. Muito obrigado pela visita e pela simpatia.

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  3. Percebi, finalmente, a quem saio com a paixão pela escrita ;) ...porque há olhos que vêem para além daquilo que se quer mostrar...
    Continua Padrinho

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  4. Olha que piropo giro da minha menina. Beijos, aparece sempre.

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  5. J Pereira! Antes de mais,o meu agradecimento por me facultar o acesso ao seu blog.A primeira impressão que senti,assim que iniciei ....foi de que devorei cada palavra com sofreguidão,tudo o que escreve é contagiante e agarra o leitor à sua história!
    Continue!!!
    Abraço! :)

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  6. Anita as suas palavras são muito simpáticas e tenho dificuldade em devolver tamanha delicadeza. Passe sempre, é gosto tê-la por cá. Obrigado

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